08 julho 2010

Media: Madrid nos mata, por Miguel Sousa Tavares

No espaço de dois dias tivemos de enfrentar dois desafios espanhóis do tipo 'mata-mata'. No futebol, perdemos, mas parece que não fomos humilhados - o que foi motivo de alívio pátrio. Na PT, ganhámos, mas consta que o jogo vai para prolongamento e, de uma forma ou de outra, a derrota está garantida. No futebol, a nossa golden share, conhecida por CR7, nem chegou a ir propriamente a jogo; na PT, sim, rebentámos patrioticamente com a bomba da golden share na cara da Telefónica - porque, afirmou o primeiro-ministro, estava em causa "o interesse estratégico de Portugal". 

Comecemos por aqui. Sempre me levantou as maiores dúvidas a invocação do interesse estratégico do país em matéria de decisões económicas. Por exemplo: a mim parecia-me do interesse estratégico do país ter mantido a Galp e a EDP como empresas públicas, mas elas foram privatizadas, com benefícios que os portugueses não alcançam; e parece-me do interesse estratégico do país manter a TAP e a Águas de Portugal no Estado, mas há uma vontade assanhada de as entregar rapidamente e em força. Em contrapartida, vi invocar o interesse estratégico do país para construir sete estádios novos e remodelar por completo outros dois para o Euro-2004 (nove estádios para um Europeu com 16 equipas, dez na África do Sul para um Mundial com 32 equipas). Dos nove estádios, quatro estão abandonados ou às moscas, constituindo um encargo fixo e eterno para as respectivas autarquias, e um quinto conduziu à falência o clube proprietário. Também vi invocar o interesse estratégico do país para justificar a aventura ruinosa do TGV que, na sua versão mais delirante, chegou a prever ligações Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Aveiro-Salamanca, Lisboa-Madrid e a exótica ligação Faro-Huelva. Felizmente, e como neste caso eram precisos dois para dançar o tango e, entretanto, o parceiro espanhol faliu mais ainda do que nós, neste momento o interesse estratégico do TGV está limitado à crucial ligação Poceirão-Badajoz. Passemos, então, a outro argumento, porque este, definitivamente, não me convenceu. 

O segundo argumento é que a brasileira Vivo é fundamental para a PT e a PT fundamental para o país. Os factos parecem demonstrar que não: se o tal 'núcleo duro' de accionistas nacionais de referência que, com a oferta a 6500 milhões, achava exactamente o mesmo e, com a oferta a 7150 milhões, já deixou de achar, é porque, de duas uma: afinal, não concordam que a Vivo seja essencial à PT ou não concordam que a PT seja essencial ao país. E, se eles pensam assim, quem somos nós ou o Governo para pensar de maneira diferente? Eu, colocado na posição simples, e admito que fácil, de mero consumidor dos serviços da PT, e desconhecendo em concreto a tremenda importância da Vivo para a empresa, declaro que concordo absolutamente com a segunda tese - a de que a PT não é essencial para o país. Pelo contrário, bem gostava de a ver substituída ou, ao menos, em concorrência com outra que oferecesse, por exemplo, assinatura grátis, uma lista telefónica que se entendesse ou um serviço de informações de números que não fosse aquele escândalo do 118. 

O terceiro argumento é o de que a golden share existe para ser usada. E usada pelo Governo - que, neste caso, de facto, nunca escondeu que o faria. Nesse ponto, pelo menos, José Sócrates tem razão: ninguém pode vir dizer que não estava a par das regras do jogo e os accionistas, que agora se viram frustrados na sua legítima vontade de encaixarem mais-valias, sabiam muito bem que eram accionistas de uma empresa onde o Estado detinha um direito especial de voto e de veto, que um dia poderia vir a usar. Assim como também ninguém ignora que, em casos idênticos, e com ou sem golden share, os espanhóis ou os franceses fariam o mesmo - como já fizeram.
Não impede que haja aqui qualquer coisa de aberrante, que é o facto de o Estado poder, com o seu voto, derrotar a vontade de três quartos dos accionistas de uma empresa privada, que tem assim uma natureza híbrida, de privada para quase tudo, pública nas situações-limite. É uma empresa privada sob tutela, uma figura que não cabe nas regras de qualquer capitalismo. Mas também é verdade que já ninguém sabe muito bem quais são as regras actuais do capitalismo, visto que ele se encarregou alegremente de se converter a si próprio numa selva sem regras: quem nos diria, há dois anos, que os contribuintes acabariam a salvar da falência os bancos que foram os causadores de uma crise mundial sem precedentes, ditada exactamente pela total subversão das regras do jogo e das simples regras de decoro e moralidade nos negócios? 

Enfim, tudo isto é muito complicado para as nossas simples cabeças. Creio que, no final, a Telefónica acabará por levar a sua avante - ou impondo nova assembleia-geral onde o Governo, pressionado, não renove o veto ao negócio; ou por imposição do tribunal europeu; ou, gastando pouco mais e lançando uma OPA sobre a PT, assim se tornando dona dela, da Vivo e do "interesse estratégico nacional". Até lá, de certeza que há alguém que já ficou a ganhar: os mestres de direito e os advogados de negócios. Anuncia-se-lhes um mar de oportunidades como há muito não viam. Seis mestres já começaram, aliás, a trabalhar, fornecendo "pareceres" a favor da utilização da golden share. Amanhã aparecerão outros seis ou sessenta a defender exactamente o contrário (e nem é de excluir até que alguns consigam dar pareceres num sentido e no outro - já aconteceu no passado). Quanto aos advogados, preparam já as anunciadas acções de indemnização da Telefónica ou de accionistas da PT contra o Estado e, se vierem a obter ganho de causa, adivinhem quem é que, no final, vai acabar por pagar este impulso patriótico... 

Eu só gostava, mas talvez seja esperar muito, que alguém me explicasse as regras do jogo, do ponto de vista do interesse público. Porque, tal como as coisas vão acontecendo, torna-se difícil entender a lógica de tudo isto. Reparem:
-BPN: nacionaliza-se; água: privatiza-se.
-BCP: ocupa-se; EDP: entrega-se.
-SCUT: não se paga; RTP: paga-se.
-Estádios de futebol: constroem-se; escolas: fecham-se.
-PT: protege-se, em nome do interesse nacional; Paisagem Protegida: urbaniza-se, em nome do interesse nacional.
-Língua: vende-se aos brasileiros; brasileiros: perseguem-se.
-Espanhóis: parceiros estratégicos no TGV e na TVI; espanhóis: inimigos estratégicos na PT.
-Dinheiro para o país: não há; dinheiro para a Madeira: sobra.
-7000 milhões para a Vivo: pouco; 7000 milhões para o PIB: imenso, mais 10% de carga fiscal.
-TAP arruinada: mete-se dinheiro; TAP recuperada: vende-se.
-Desempregado crónico: subsidia-se; jovem desempregado: exila-se.
-Empregado efectivo: não se pode despedir; empregado a prazo há mais de 18 meses: despede-se.
-Marinha mercante e de pesca: liquida-se; submarinos: compram-se.
-Agricultura: paga-se para fechar; campos de golfe: paga-se para abrir.
E etc., etc., etc. Por favor, entendam-se, que já vai sendo tempo.
(Texto publicado na edição do Expresso de 3 de Julho de 2010)

2 comentários:

  1. Gostei especialemte da frase "Desempregado crónico: subsidia-se; jovem desempregado: exila-se."

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  2. a unica coisa certa neste post é "Enfim, tudo isto é muito complicado para as nossas simples cabeças"
    tudo o resto é delirios de falta de informação e de quem apenas vê um dos lados da verdade.

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