Media: Madrid nos mata, por Miguel Sousa Tavares
No espaço de dois dias tivemos de enfrentar dois  desafios espanhóis do tipo 'mata-mata'. No futebol, perdemos, mas parece  que não fomos humilhados - o que foi motivo de alívio pátrio. Na PT,  ganhámos, mas consta que o jogo vai para prolongamento e, de uma forma  ou de outra, a derrota está garantida. No futebol, a nossa golden share,  conhecida por CR7, nem chegou a ir propriamente a jogo; na PT, sim,  rebentámos patrioticamente com a bomba da golden share na cara da  Telefónica - porque, afirmou o primeiro-ministro, estava em causa "o  interesse estratégico de Portugal". 
Comecemos por  aqui. Sempre me levantou as maiores dúvidas a invocação do interesse  estratégico do país em matéria de decisões económicas. Por exemplo: a  mim parecia-me do interesse estratégico do país ter mantido a Galp e a  EDP como empresas públicas, mas elas foram privatizadas, com benefícios  que os portugueses não alcançam; e parece-me do interesse estratégico do  país manter a TAP e a Águas de Portugal no Estado, mas há uma vontade  assanhada de as entregar rapidamente e em força. Em contrapartida, vi  invocar o interesse estratégico do país para construir sete estádios  novos e remodelar por completo outros dois para o Euro-2004 (nove  estádios para um Europeu com 16 equipas, dez na África do Sul para um  Mundial com 32 equipas). Dos nove estádios, quatro estão abandonados ou  às moscas, constituindo um encargo fixo e eterno para as respectivas  autarquias, e um quinto conduziu à falência o clube proprietário. Também  vi invocar o interesse estratégico do país para justificar a aventura  ruinosa do TGV que, na sua versão mais delirante, chegou a prever  ligações Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Aveiro-Salamanca, Lisboa-Madrid e a  exótica ligação Faro-Huelva. Felizmente, e como neste caso eram precisos  dois para dançar o tango e, entretanto, o parceiro espanhol faliu mais  ainda do que nós, neste momento o interesse estratégico do TGV está  limitado à crucial ligação Poceirão-Badajoz. Passemos, então, a outro  argumento, porque este, definitivamente, não me convenceu. 
O segundo argumento é que a brasileira Vivo é fundamental  para a PT e a PT fundamental para o país. Os factos parecem demonstrar  que não: se o tal 'núcleo duro' de accionistas nacionais de referência  que, com a oferta a 6500 milhões, achava exactamente o mesmo e, com a  oferta a 7150 milhões, já deixou de achar, é porque, de duas uma:  afinal, não concordam que a Vivo seja essencial à PT ou não concordam  que a PT seja essencial ao país. E, se eles pensam assim, quem somos nós  ou o Governo para pensar de maneira diferente? Eu, colocado na posição  simples, e admito que fácil, de mero consumidor dos serviços da PT, e  desconhecendo em concreto a tremenda importância da Vivo para a empresa,  declaro que concordo absolutamente com a segunda tese - a de que a PT  não é essencial para o país. Pelo contrário, bem gostava de a ver  substituída ou, ao menos, em concorrência com outra que oferecesse, por  exemplo, assinatura grátis, uma lista telefónica que se entendesse ou um  serviço de informações de números que não fosse aquele escândalo do  118. 
O terceiro argumento é o de que a golden share  existe para ser usada. E usada pelo Governo - que, neste caso, de  facto, nunca escondeu que o faria. Nesse ponto, pelo menos, José  Sócrates tem razão: ninguém pode vir dizer que não estava a par das  regras do jogo e os accionistas, que agora se viram frustrados na sua  legítima vontade de encaixarem mais-valias, sabiam muito bem que eram  accionistas de uma empresa onde o Estado detinha um direito especial de  voto e de veto, que um dia poderia vir a usar. Assim como também ninguém  ignora que, em casos idênticos, e com ou sem golden share, os espanhóis  ou os franceses fariam o mesmo - como já fizeram. 
Não  impede que haja aqui qualquer coisa de aberrante, que é o facto de o  Estado poder, com o seu voto, derrotar a vontade de três quartos dos  accionistas de uma empresa privada, que tem assim uma natureza híbrida,  de privada para quase tudo, pública nas situações-limite. É uma empresa  privada sob tutela, uma figura que não cabe nas regras de qualquer  capitalismo. Mas também é verdade que já ninguém sabe muito bem quais  são as regras actuais do capitalismo, visto que ele se encarregou  alegremente de se converter a si próprio numa selva sem regras: quem nos  diria, há dois anos, que os contribuintes acabariam a salvar da  falência os bancos que foram os causadores de uma crise mundial sem  precedentes, ditada exactamente pela total subversão das regras do jogo e  das simples regras de decoro e moralidade nos negócios? 
Enfim, tudo isto é muito complicado para as nossas simples  cabeças. Creio que, no final, a Telefónica acabará por levar a sua  avante - ou impondo nova assembleia-geral onde o Governo, pressionado,  não renove o veto ao negócio; ou por imposição do tribunal europeu; ou,  gastando pouco mais e lançando uma OPA sobre a PT, assim se tornando  dona dela, da Vivo e do "interesse estratégico nacional". Até lá, de  certeza que há alguém que já ficou a ganhar: os mestres de direito e os  advogados de negócios. Anuncia-se-lhes um mar de oportunidades como há  muito não viam. Seis mestres já começaram, aliás, a trabalhar,  fornecendo "pareceres" a favor da utilização da golden share. Amanhã  aparecerão outros seis ou sessenta a defender exactamente o contrário (e  nem é de excluir até que alguns consigam dar pareceres num sentido e no  outro - já aconteceu no passado). Quanto aos advogados, preparam já as  anunciadas acções de indemnização da Telefónica ou de accionistas da PT  contra o Estado e, se vierem a obter ganho de causa, adivinhem quem é  que, no final, vai acabar por pagar este impulso patriótico... 
Eu só gostava, mas talvez seja esperar muito, que alguém  me explicasse as regras do jogo, do ponto de vista do interesse público.  Porque, tal como as coisas vão acontecendo, torna-se difícil entender a  lógica de tudo isto. Reparem: 
-BPN:  nacionaliza-se; água: privatiza-se. 
-BCP: ocupa-se;  EDP: entrega-se. 
-SCUT: não se paga; RTP: paga-se.  
-Estádios de futebol: constroem-se; escolas:  fecham-se. 
-PT: protege-se, em nome do interesse  nacional; Paisagem Protegida: urbaniza-se, em nome do interesse  nacional. 
-Língua: vende-se aos brasileiros;  brasileiros: perseguem-se. 
-Espanhóis: parceiros  estratégicos no TGV e na TVI; espanhóis: inimigos estratégicos na PT. 
-Dinheiro para o país: não há; dinheiro para a Madeira:  sobra. 
-7000 milhões para a Vivo: pouco; 7000  milhões para o PIB: imenso, mais 10% de carga fiscal. 
-TAP arruinada: mete-se dinheiro; TAP recuperada:  vende-se. 
-Desempregado crónico: subsidia-se; jovem  desempregado: exila-se. 
-Empregado efectivo: não  se pode despedir; empregado a prazo há mais de 18 meses: despede-se. 
-Marinha mercante e de pesca: liquida-se; submarinos:  compram-se. 
-Agricultura: paga-se para fechar;  campos de golfe: paga-se para abrir. 
E etc., etc.,  etc. Por favor, entendam-se, que já vai sendo tempo. 
(Texto  publicado na edição do Expresso de 3 de Julho de 2010)